Beatriz Segall despede-se de Odete Roitman brilhando muito mais que a namoradinha do Brasil
A onipotência eletrônica está com seus dias contados: a milionária Odete Roitman, capaz realmente de tudo, vai morrer assassinada com três tiros na próxima sexta-feira. Vai ser o presente de Natal dos novelistas Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères (cada um é responsável por um dos tiros) para os milhões de espectadores que, há oito meses, vêm transformando a telenovela Vale Tudo, atração das noites de segunda a sábado na Rede Globo, no programa de maior audiência do país. Odete é tão má, mas tão má que em seus últimos dias não tem recebido a indulgência nem mesmo de sua criadora, a atriz Beatriz Segall. "Ela é uma grossa", dispara a atriz de 55 anos, a primeira a destruir o mito da burguesa refinada e malvada de seu personagem. Nora do requintado pintor Lazar Segall — ela estudou na Europa e utiliza um português no qual não cabem gírias —, Beatriz sabe muito bem que Odete nunca teve berço, mas um "vernizinho" superficial. "Ela é artificial em tudo, até na distinção. A começar pelos namorados. Escolhe a dedo os gigolôs de pior nível possível." A atriz, porém, não considera Odete Roitman o cúmulo da atrocidade."Ela é fichinha perto dos empresários e políticos da vida real." Beatriz imagina até quais seriam os amigos de Odete se esta existisse de verdade: Paulo Maluf, o ministro Antônio Carlos Magalhães, os empresários Mário Garnero e Mathias Machline e os latifundiários da UDR. "Ela seria amiga também daquele português, o José Lourenço (deputado do PFL), mas nunca o convidaria para jantar em sua casa."
Mas o que deu em Beatriz para criticar a personagem que mais fascina, no momento, o Brasil? Ficou esnobe como Odete Roitman? Jamais. Beatriz é petista desde a fundação do Partido dos Trabalhadores, amargou duras penas quando o ex-marido, o economista Maurício Segall, foi preso e torturado pela ditadura militar e pode ser encontrada num pé sujo tomando um cafezinho — três situações impensáveis na vida de Odete.
Sua modéstia não a deixa admitir que é uma leitora sofisticadíssima, de autores conhecidos apenas por dois ou três brasileiros eruditos. "Ai, meu Deus, só porque falei uma vez em Alejo Carpentier, o maior escritor, para mim, da América Latina, vão me chamar de intelectual? Por favor, me ajude a destruir este rótulo. Gosto de Thomas Mann, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Balzac, ou seja, os clássicos." Um de seus irmãos — é assim que ela se refere aos amigos do peito —, o autor teatral Flávio Marinho, sabe, no entanto, que a amiga devora turminhas de poetas e romancistas desconhecidos de séculos e séculos atrás. "Não, não. O que sou é uma leitora compulsiva. Nos jornais, por exemplo, leio os artigos de quem concorda comigo. Gosto, portanto, de Fernando Pedreira, de Moacyr Werneck de Castro, de Jânio de Freitas, de Ricardo Noblat e, até há pouco, dos artigos de Hélio Pellegrino."
Beatriz vive entre o casarão que foi do sogro Lazar Segall, no bairro paulista de Vila Mariana (ao lado do Museu Lazar Segall), e a cobertura no 14° andar de um edifício da Rua Barão da Torre, na carioca Ipanema. "A construtora deve ter feito uma mutreta para construir um prédio tão alto aqui", diz na varanda com vista para a praia e para a Lagoa Rodrigo de Freitas. Nega até o hábito de freqüentar restaurantes requintados. "Nem vou a estes lugares. Gosto é de comida de qualidade."
Ela se considera preguiçosa e comodista. Mas assim que terminarem as gravações da novela, vai começar os ensaios de Lilian, uma peça sobre a escritora americana Lilian Hellman que estréia em março no Teatro Cândido Mendes, sob a direção de José Possi Neto. E encontra apenas dois pontos de identidade com Odete Roitman: a paixão por Paris e o horror à falta de educação do brasileiro que desrespeita o trânsito ou fala alto em restaurantes.
Por incrível que pareça, Beatriz Segall, mãe, como Odete, de três filhos — o cineasta Sérgio Toledo, 32 anos; o artista plástico Paulo, 24, e o arquiteto Mário, de 29, que mora em Londres com o único netinho Pedro —, define a personagem da novela como uma mãe dedicada e bastante preocupada com os filhos. "Não digo que ela seja boa, mas ela se preocupa muito com Afonso (Cássio Gabus Mendes) e com Heleninha (Renata Sorrah). A psicanálise criou este mito de que a mãe é responsável pelo que os filhos são. E a individualidade deles? Por que Afonso se deixa esmagar e Heleninha foge para o álcool? Ora, se a mãe é prepotente, eles que saiam de casa." Beatriz comenta que seus três filhos, por exemplo, jamais permitiriam que ela fosse prepotente. "Eu tenho três pais. Dou sempre satisfação aos três." Na busca de possíveis identificações entre Odete e Beatriz, os filhos Sérgio e Paulo não vêem mais do que dois pontos em comum. Um deles está no campo da tomada de decisões: as duas não vacilam. "Claro que a Odete opta sempre pelo mal; ao contrário da nossa mãe", disse Sérgio ao repórter Apoenan Rodrigues da sucursal paulista do JORNAL DO BRASIL. "Aliás, caráter é o que não falta a ela", endossou Paulo. O outro terreno de perfeita identificação é o gosto pelo lado prazeroso da vida. "Mamãe gosta de cozinhar, de viajar", lembrou Paulo. "E, principalmente, é muito vaidosa", completou Sérgio.
O público não tem se importado com as maldades de Odete, porque, segundo Beatriz, está fascinado por sua onipotência. "Maria de Fátima (Glória Pires) é também vilã, mas apenas sonha com o poder. Odete chegou lá. As pessoas querem ser Odete Roitman, embora se revoltem com suas atrocidades."
Será que é por isso que, ao contrário do que se pensa que acontece com atores que interpretam vilões na TV, Beatriz só recebe sorrisos e elogios nas ruas? "Não acredito que um ator tenha levado guardachuvada na rua por causa de um personagem". "Antigamente, o ator se vangloriava disso, porque a confusão do público traduzia um trabalho convincente. Discordo. Hoje o público sabe muito bem separar o ator do personagem. Quando me chamam de Odete na rua, por exemplo, nem dou ouvidos. Só atendo por Beatriz." A única vez em que a atriz ouviu um desaforo foi quando interpretava a também refinada e malvada Lourdes Mesquita, de Água Viva. "Eu contava para uma amiga justamente que não sofria hostilidades quando um vendedor de bilhetes de loteria gritou que quem fazia papel de má era má mesmo. Ele me chamou de peste e fiquei com a cara no chão."
Para Beatriz, ainda há outra explicação para a boa reação do público. Num país de "corruptos sem ética, da lei do Gérson, da corrida atrás do poder para uso em proveito próprio, do jeitinho brasileiro", o vilão virou um anti-herói. A transformação não poderia passar despercebida pelo mercado publicitário. Já vai longe o tempo em que o ator José Lewgoy perdeu um contrato para estrelar um comercial de TV ao ser descoberto que era ele o assassino de Miguel Fragonard em Água Viva. Odete está nas rádios vendendo uma revista de lojas comerciais e já recusou dois anúncios para TV. "Um era de um produto que não gostei. Outro era de bebida. E cigarro e bebida não anuncio. Nem me deixo fotografar fumando ou bebendo. É claro que tomo o meu uisquinho, mas não faço proselitismo", diz Beatriz.
Basta dizer que a Caixa Econômica Federal contratou a ladra maior do país, Maria de Fátima, na pele de Glória Pires, para anunciar sua extração lotérica de Natal. Os autores da idéia, o diretor de criação da agência MPM, Fábio Siqueira, e os publicitários Adeir Rampazo e Wanderley Doro, descobriram o carisma da vilã numa pesquisa que elogia Glória Pires como a atriz mais popular do momento. "Eu pensei que depois de Roque Santeiro nunca mais uma novela mobilizaria tanto o país. Mas Vale Tudo é um marco", diz Fábio. Glória Pires tampouco é agredida pelo público por suas maldades. "O público evoluiu. Eu estava em Goiânia esta semana, quando um sapateiro bem humilde me disse que não tinha raiva da Fátima porque era tudo novela", conta Glória. O publicitário Washington Olivetto concorda com a tese de Beatriz Segall de que, num país de tantos vilões, estes se transformam em anti-heróis. "Há ainda os vilões que favorecem uma virada crítica a certos produtos. O produto transforma o bandido em mocinho. E ganha por isso um valor incrível. E o caso da Loteria da Caixa que fez a Maria de Fátima fazer papel de boazinha, ganhar dinheiro honestamente".
Vilã ou não, o sucesso de Odete Roitman deve muito à irrepreensível atuação de Beatriz Segall. A única crítica que se costuma fazer à atriz é a de que sua elegância natural facilita a composição de mulheres burguesas. "O que é fácil, para mim, é interpretar um bom texto", rebate. Um dos bons textos é certamente o de Gilberto Braga, o escritor que levou a atriz de teatro para viver na TV a refinada e malvada Celina de Dancin'Days. A última personagem pobre, brega e baixo astral que Beatriz interpretou foi a mãe de Carmem, na novela Carmen, ano passado, na Rede Manchete. "Foi uma proposta tentadora de renovação da TV, mas quanto ao desenrolar, gostaria de não falar".
Ela não fala também quem matou Odete Roitman. Ricardo Waddington, o diretor da novela, avisa que o assassino só será descoberto no dia da exibição do último capítulo — 6 de janeiro. Beatriz considera a curiosidade "uma morbidez natural de nosso tempo" e se mantém totalmente muda. "Estou à disposição da Globo até para gravar o crime ao vivo, no momento em que o capítulo for ao ar". Resta o consolo de, até lá, conviver diariamente com uma das melhores atrizes do país. Isto já não é mais segredo para ninguém.
AS MALDADES DE ODETE ROITMAN - Durante o tempo em que ficou no ar, Odete Roitman produziu um manual de perversidades. Abaixo, escolhidas pela autora Leonor Bassères, 10 das maiores maldades da personagem:
- Odete envenenou a maionese da empresa de Raquel (Regina Duarte) para prejudicá-la comercialmente sem se importar com a morte de inúmeras pessoas. Ela disse que dois ou três desdentados não fariam falta a ninguém.
- Incriminou a própria filha, Heleninha (Renata Sorrah), por homicídio culposo do irmão Leonardo, quando ela mesma era a responsável pelo acidente de carro que o matou.
- Usou o seu poder de grande anunciante para tentar forçar a demissão de Solange (Lídia Brondi) da revista Tomorrow.
- Forjou um exame de esterilidade para livrar Afonso de uma possível paternidade indesejada.
- Empurrou a vigarista Maria de Fátima (Glória Pires) para um casamento com o filho só para vê-lo morando em Paris.
- Fez um pacto com Maria de Fátima para separar Ivan (Antônio Fagundes) de Raquel.
- Comprou um marido para a filha Heleninha.
- Induziu Ivan a fazer um suborno e chantageou Raquel com ameaça de colocá-lo na cadeia pelo crime.
- Participou de uma negociata eleitoral em Póvoas exigindo 51% das ações do negócio imobiliário que Marco Aurélio (Reginaldo Faria) armou com o candidato a prefeito do lugar.
- Maltrata todos os seus empregados, aos quais se recusa a pagar a URP garantida por lei.
Por Apoenan Rodrigues e Marcia Cezimbra
Jornal do Brasil
18/12/1988
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