O gênero novela possui diversos constituintes básicos que se repetem em praticamente todas as tramas no decorrer de décadas. Um deles é a presença da figura de uma matriarca autoritária e manipuladora, que é facilmente reconhecida com a vilã da trama. Podemos citar algumas dessas famosas “megeras” televisivas, como a Yolanda Pratini (Joana Fomm) de Dancin´ Days, a Laurinha Figueiroa (Glória Menezes) de Rainha da Sucata, a Branca Letícia (Suzana Vieira) de Por Amor e a Bia Falcão (Fernanda Montenegro) de Belíssima. No entanto, nenhuma dessas mulheres possui a força da Odete Roitman interpretada por Beatriz Segall em Vale Tudo.
Odete Roitman não foi pioneira nesse tipo de personagem e sequer inaugurou um estilo: ele já existia há décadas. Mas a personagem é tão emblemática no imaginário do brasileiro que não apenas se tornou referência para tudo que veio depois, mas igualmente ressignificou tudo o que foi feito antes. Odete Roitman é a vilã definitiva da teledramaturgia brasileira.
No entanto, para muitos espectadores que assistem Vale Tudo pela primeira vez no Canal Viva, tamanha fama parece injustificável. Odete Roitman é uma personagem moderada, que no decorrer da trama comete pouquíssimos atos dignos de uma grande vilã. Seu ponto fonte é manipular a vida dos filhos, arranjar casamento para os mesmos e depreciar o Brasil.
Para entender a razão de a personagem ser tão marcante é preciso retornar à conjuntura sócio-política do Brasil de 1988. O país recentemente saíra de um regime ditatorial que perdurou de 1964 até 1985. O atual presidente, José Sarney (vice de Tancredo Neves), havia sido eleito por votos de deputados federais e senadores. O país se encontrava em plena abertura política e a primeira eleição direta ocorreria apenas em 1989, eleição que colocou Collor no poder. O país, nesse conturbado contexto, atravessava uma crise politica, social e, principalmente, uma severa crise de identidade. A auto-estima do brasileiro estava mais do que nunca colocada em xeque e o clima de “salve-se quem puder” pairava por todas as classes sociais do país.
É nesse contexto que Vale Tudo foi ao ar e Gilberto Braga criou sua Odete Roitman, uma representante da extrema direita que nutria um grande desprezo pelo país. E o propósito da personagem era claro: cutucar sem qualquer cerimônia as feridas abertas do brasileiro da época. O texto reservado a Odete percorria com deboche, ironia e descaso todos os grandes impasses do Brasil daquele tempo: a falta de perspectiva, a miséria, o desemprego, o desfacelamento social e político, a crise de identidade do brasileiro e sua capacidade de superação. Citando algumas de suas famosas frases, Odete Roitman afirma que o Brasil é “uma mistura de raças que não deu certo” ou ainda que “do mais alto escalão ao mais reles chulé esse país é um festival de ineficiência”. Sendo ainda mais cruel e implacável, Odete chama toda a população brasileira (130 milhões na época) de “baderneiros a ser governados no chicote”. Odete Roitman ainda funcionava como uma denúncia, tirando a sujeira debaixo do tapete e jogando na cara do espectador.
Era difícil muitas vezes não enxergar irrefutáveis verdades em muitos de seus impiedosos comentários sobre a realidade brasileira. Diante disso tudo, não parece desprovido de sentido o comentário que Odete faz a Renato (Adriano Reys) sobre o relógio que havia ganho do ditador líbio Kadhafi, atualmente muito presente na mídia. Em um país recém saído da ditadura, Odete de fato não depositava qualquer credibilidade no movimento democrático que se fortalecia em 1988, afirmando que a crise na qual o país atravessava era resultado de uma “falta de autoridade”.
Para o brasileiro de 2011, que vive um momento sócio-político muito mais estável que o do brasileiro de 1988, Odete Roitman não reverbera mais da mesma forma, ainda que muitas de seus comentários permaneçam atuais. Nossas exigências como espectadores também modificaram muito: uma vilã que se preze precisa cometer muitos excessos. No entanto, Odete Roitman permanece única e inesquecível por sua característica de personagem-denúncia.
E, claro, lembremos a pergunta que não quer calar nos últimos 23 anos: Quem matou Odete Roitman?
Colaborou
Bruno Machado
b_machado@uol.com.br
Quem a matou? Certamente algum brasileiro doente de amor por um país de quinta categoria como o Brasil. Ou seja, um medíocre vítima de forte lavagem cerebral.
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