quinta-feira, 17 de março de 2011

ALÉM DA NOVELA - ANÁLISE DE VALE TUDO

 Era 1988, no ano seguinte finalmente voltaríamos às urnas para eleger o presidente da república após um longo período de ditadura militar, e as últimas chamas dos anos de chumbo ainda queimavam, deixando um rastro de mau cheiro no ar. O Brasil oscilava entre o otimismo com os novos tempos que se anunciavam e os sentimentos de desconfiança e desamparo fomentados pela repressão.


O estado de coisas a que foi submetido o povo brasileiro àquele tempo acabou por nos fazer crer que eram a malandragem, o jogo de cintura, o jeitinho de levar vantagem em tudo, o talento inato para a desonestidade e uma "queda" irresistível e pusilânime pela alegria indolente, os folguedos e a lascívia, tudo o que nos cabia como dote para seguir em frente.

Pois bem, foi neste ano que a TV Globo levou ao ar pela primeira vez "Vale Tudo", novela de Gilberto Braga, escrita por ele, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères.

Lembro-me perfeitamente do impacto que me causaram logo de cara as primeiras cenas e a abertura, com a Gal Costa cantando os versos de Cazuza: "Brasil, mostra a tua cara! Quero ver quem paga pra gente ficar assim! Brasil, qual é o teu negócio, o nome do teu sócio? Confia em mim!"

O fio condutor da estória parte justamente deste perfil forjado do brasileiro e de sua conduta ética, propondo ao telespectador a seguinte pergunta: No Brasil, vale tudo para chegar onde se quer?

No centro do enredo, duas personagens representam os dois lados da questão: Raquel e Maria de Fátima, mãe e filha, a primeira imbuída dos mais rigorosos valores morais, a segunda desprovida de qualquer sentido ético. O antagonismo entre os dois pontos-de-vista deflagra o início da narrativa e uma série de mudanças na vida de ambas, que tomam caminhos divergentes, envolvendo as demais personagens. 
    

Raquel agarrra-se à simploriedade como consequência de sua visão dogmática sobre a honestidade, e pelo medo de que a busca por um conforto material possa corrompê-la e destitui-la daquilo que, na sua crença, a protege, a ampara. O relacionamento com Ivan, ao mesmo tempo que a faz recobrar sentimentos já dados como perdidos, também lhe traz aflição, angústia, temeridade por achar que ele tenha mais ambição do que ela é capaz de aceitar.


Ivan, por outro lado, sabe o que quer e, embora mantenha certos limites na luta por seus objetivos, acredita na ousadia, na riqueza de seus propósitos, e seus escrúpulos não se equiparam aos de sua amada.     


O papel exercido na trama por Maria de Fátima emerge exatamente daquilo que na teoria Junguiana se compreende como 'sombra', no caso, o lado 'sombra' da mãe, trazendo à tona tudo o que Raquel tem mais pavor de descobrir dentro de si: o inconformismo com o que lhe é dado pelo destino, a necessidade de poder, o desejo desmedido de possuir e se exibir, e um imenso desprezo por tudo e todos que coloquem-se contrários aos seus fins. 

Maria de Fátima não é boa nem má, é simplesmente amoral. Tão rigorosa quanto a mãe em suas convicções, ela passa por cima de qualquer um, inclusive de si mesma e seus sentimentos, se for necessário, para atingir seus propósitos.

Já seu companheiro de trapaças, o César, é um 'bundão', um cara que, se não conhecesse a Fátima, continuaria tranquilamente sua trajetória decadente, vivendo de expedientes e pequenos trambiques. Um desonesto medíocre, vivendo seus derradeiros dias de galã-gigolô, até gastar seus últimos cartuchos. César se ancora em Fátima como um navio velho a um porto seguro. 

Essas quatro personagens desencadeiam todos os acontecimentos que compõem o universo dramático de "Vale Tudo", onde transitam os tipos mais diversos do caráter brasileiro, ou melhor, carioca: o 'boa-praça', o otimista, o trabalhador, o enganador, a mulher independente, a caça-marido, a faxineira sacadora da alma humana, a socialite, a deslumbrada, a solteirona 'caxias', o artista, o empresário, e por aí vai. Os tipos emocionais também são muito bem definidos e de imediata identificação com o público. 

Os ingredientes fundamentais na estrutura de uma telenovela estão todos lá, os elementos do folhetim e do melodrama, e ditos em bom português, coloquial, mas o bom português do Brasil, aquele em que a gente se reconhece e que torna as personagens verossímeis, sem parecer que o ator está recitando um versinho de escola primária. O texto é incrivelmente bem escrito, as cenas tão bem encaixadas umas nas outras que parecem vir de um único autor. O elenco bem escalado, atores certos nos papéis certos, em primorosas atuações. Enfim, um momento de excelência na televisão brasileira.

'Vale Tudo" é de um tempo em que se fazia televisão com ufanismo, no melhor sentido da palavra, e se apresenta um probleminha aqui ou acolá, é por que até nisso ela é a cara do Brasil, não é perfeita, mas é boa pra danar!
  
Texto extraído do blog da atriz e roteirista Cecilia Rangel - www.ceciliarangel.blogspot.com

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