"Gosto de levar vantagem em tudo, certo?" A famosa frase do não menos célebre meia-armador da seleção tricampeã de 1970 entrou para a crônica política como a "lei de Gerson", uma expressão que resume o espírito oportunista, aproveitador, individualista e predatório que campeia em nosso país. Esse ânimo nunca esteve tão em evidência como nesses tempos especulativos de over, de 1% de inflação ao dia, de pirâmides e bandalhas, quando os valores se desmancham no ar e o que vigora é a moral macunaímica do "cada um por si e Deus contra todos".
Segundo o economista João Manuel Cardoso de Mello, em recente entrevista a revista Veja, todo mundo atualmente quer levar vantagem em tudo. O que se vê é o esfacelamento do espírito público, o desprestígio da persistência e da paciência, a desmoralização da idéia de prorrogar satisfações imediatas em nome de uma construção futura coletiva e duradoura. Esse espírito está presente no famigerado lema "é dando que se recebe", do deputado Roberto Cardoso Alves (PMDB-SP), uma apropriação do espírito franciscano para fins fisiológicos. Ele é criticado na peça Meno Male, de Juca de Oliveira, um sucesso que ficou em cartaz 18 meses em São Paulo e estreou esta semana no Rio. "Hoje em dia", diz Juca, "há um total descrédito com a política. O individualismo e a hipocrisia reinam".
A "lei de Gerson" pode ser identificada na farta concessão de canais de rádio e televisão em roca do quinto ano para o presidente. E também na espantosa frase do Procurador-Geral da República, Saulo Ramos: "Eu driblei os 559 constituintes com uma ginga de corpo". Com essa declaração, ele quer dizer que o governo inventou uma fórmula jurídica para evitar que a Constituição, que será promulgada na próxima quarta-feira, consiga extinguir o Conselho de Segurança Nacional, um órgão que simboliza o regime militar que afinal está sendo enterrado. É o paradoxo: o país espera uma ordenação jurídica mais justa, enquanto a crise econômica (e de valores) continua a recompensar a malandragem, o oportunismo e a especulação, certo?
GOLPES DE MESTRE NA BOLSA
Quando o assunto é especulação, neste país, nenhum nome acorre mais prontamente à ponta da língua do que o do empresário Naji Robert Nahas, 42 anos, libanês naturalizado brasileiro, dono de um conglomerado de 27 empresas, o Grupo Selecta, que no início deste ano era avaliado em 400 milhões de dólares. Ele, naturalmente não gosta do rótulo. "Não me considero especulador", disse recentemente à revista Veja. "Mas, se alguém que compra um pano para fazer uma calça é um especulador, então eu também sou." (Não é um exemplo tomado ao acaso: o pai de Nahas, também libanês, possuía, no Egito, um imenso parque têxtil, que foi nacionalizado quando Gamal Abdel Nasser chegou à
presidência da república.
Ao por os pés em São Paulo, ele trazia pouco menos de dois milhões de dólares, que imediatamente cuidou de multiplicar. Seu primeiro negócio foi a compra de trezentos alqueires na região de Itu, cidade a 92 quilômetros de São Paulo, que não tardaram a se valorizar com a abertura da rodovia Castelo Branco. Mais tarde, fez vir da Inglaterra um tipo de coelho, fruto de 57 sucessivos cruzamentos programados por computador, capaz de produzir cem filhotes por ano. Dos animaizinhos de sua Granja Selecta, esse extraordinário farejador de bons negócios aproveita tudo - até mesmo as patas, para fazer chaveiros, e o cérebro, que vende a um laboratório americano para a produção de vacinas.
Suas jogadas nem sempre - ou quase nunca, segundo seus numerosos adversários - são ortodoxas, do ponto de vista legal e/ou moral, e várias delas, por isso mesmo, lhe têm valido aborrecimentos e publicidade negativa. Em agosto passado, por exemplo, ao cabo de uma pendenga judicial que rolou por quase dez anos, Nahas foi condenado pelo Tribunal de Alçada Cível de São Paulo a pagar 1 milhão de dólares ao empresário Nagib Audi, com o qual se envolveu numa nebulosa e abortada operação de exportação de 74 mil barris de tiner (solvente de tinta) para o Kuwait. Em outro episódio rumoroso, foi acusado pela Commodity Futures Trading Commision, organismo do governo dos Estados Unidos, de manipular fraudulentamente os preços da prata no mercado americano, em 1985, acusação da qual seria inocentado pela Suprema Corte dois anos depois.
Trocando em miúdos: o investidor compra hoje um contrato que lhe dá direito a receber determinada ação dentro de determinado tempo, sem que tenha de desembolsar, agora, um tostão sequer - paga apenas, ao vendedor, uma margem mínima de prêmio, ou comissão. A pessoa que compra o direito sobre uma ação - o"comprador", no jargão da bolsa -, digamos por Cz$ 100,00, para dezembro, vai torcer para que a cotação desse papel esteja mais alta no dia do vencimento. Se isso acontecer, ele vai pagar, em dezembro, apenas Cz$ 100,00 por uma ação que estará, então, valendo mais. Do outro lado está o "vendido", nome que se dá a quem vendeu o contrato. Ele tem que entregar o papel no dia do vencimento, e por isso que a ação esteja, nesse dia, cotada abaixo daqueles Cz$ 100,00. Nesse caso, o negócio se consuma, pela simples razão de que ninguém pagaria Cz$ 100,00 por uma ação que está valendo Cz$ 80,00 - e o "vendido" sairá ganhando: terá embolsado o prêmio, ou comissão, pago pelo "comprador" na venda do contrato.
Do ponto de vista legal, é uma operação perfeitamente regular. Nahas esteve particularmente ativo nesse mercado de opções, nos últimos meses, na posição de "comprado", ganhando milhões de dólares em abril e junho e perdendo em agosto. Dono de uma enorme quantidade de ações Petrobrás, ele para comprar entrava no mercado, às vésperas do vencimento, ainda mais, forçando, assim, as cotações para cima. Com isso, os "vendidos" ficavam desesperados - a preços elevados, como comprar as ações que devem ser entregues a Nahas no dia do vencimento? Muitos desses infelizes, ao final do jogo, têm ido engrossar a crescente legião dos inimigos de Naji Robert Nahas.
Publicado no Jornal do Brasil em 2/10/1988
Por Humberto Werneck e Nilton Horita
Assista o polêmico vídeo da Lei de Gerson
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