segunda-feira, 16 de maio de 2011

ALÉM DA NOVELA - RECORDE NA TV

RECORDE NA TV

Isto nunca aconteceu antes. Nem com as artimanhas extraordinárias de Janete Clair, nem mesmo com o talento admirável de Dias Gomes/Aguinaldo Silva, no inesquecível "Roque Santeiro", a novela de maior audiência dos últimos anos. "Vale Tudo" chegou aos 88 pontos de audiência na segunda meia-hora do capítulo de quarta-feira, sendo vista por 5,3 milhões de espectadores no Grande Rio.


Trabalho com índices de audiência de televisão desde 1976 e nunca esbarrei em números assim. Passei pelos sucessos de Janete Clair, pelas grandes novelas das sete, obras inesquecíveis de Cassiano Gabus Mendes e Sílvio de Abreu. E nenhuma delas conseguiu mobilizar tanto as pessoas como "Vale Tudo", de Gilberto Braga, Leonor Bassères e Aguinaldo Silva.

"Locomotivas" deu 82 por cento no último capítulo, e "Roque Santeiro" chegou aos 89 por cento em seus últimos momentos, mas nunca vi uma novela dar 88 por cento num capítulo normal, de meio de caminho, mais ou menos uns dois meses antes de seu final.

Aqui é preciso parar e pensar na tal da Maria de Fátima (Glória Pires) e sua representação simbólica junto aos espectadores brasileiros. Sem dúvida, a grande audiência do capítulo de quarta-feira se deve à vingança muito mais do que a qualquer outra coisa. Foi o capítulo da vingança, o momento em que os sentimentos de justiça e ódio, até então reprimidos pelo desenrolar da história, alcançam sua catarse maior: punir Maria de Fátima, desmascará-la. Fazê-la pagar por tudo que já fez.

E olha que fez. A Maria de Fátima é o cúmulo do mau-caratismo e da maldade. Ela transgride todas as normas de respeito e dignidade, e mexe com todo mundo porque ultrapassa todos os limites. Há coisas que ela diz que as pessoas até pensam, mas jamais teriam coragem de dizer. Há coisas que ela faz que, imagino também, as pessoas gostariam de fazer, mas jamais fariam por educação ou moral. Ela não. Ela age apenas em prol do próprio ganho, seja a que preço for. Aliás, soube que ela vai vender o próprio filho.

Enquanto isso, Gilberto Braga e seus parceiros deitam e rolam. Exploram essa emoção que rola entre a personagem e o público, uma troca das mais valiosas, perseguida por quase todo os autores, e quase nunca alcançada a tais níveis. Em "Vale Tudo" é possível ver um Gilberto Braga mais amadurecido, mais tranqüilo como autor e por isso mesmo mais despudorado em relação a seus personagens. E capaz de uma Odete Roitman, onipotente, cruel e dura como nunca nenhuma antes. Uma Maria de Fátima que extrapola e mobiliza o País. Diálogos fundos e expressivos e um texto realista e 'crítico como nunca ousara até agora.

Gilberto chega a ser agressivo na realidade que coloca; ao mesmo tempo, não perde o romantismo e uma certa pieguice necessários ao folhetim. Faz hoje a mistura harmônica e madura desses igredientes. Transita no amor, nos triângulos e nos pares amorosos com a mesma segurança com que critica e analisa a crise nacional. Constrói histórias paralelas, personagens de apoio e monta toda uma carpintaria perfeita para um sucesso às oito da noite, na principal emissora do País. Não tivesse sido discípulo da grande artesã da telenovela, a saudosa Janete Clair. Junte-se a isso dois excelentes parceiros, igualmente talentosos e criativos, e temos a novela recorde da audiência nacional nos últimos anos. E do jeito que a coisa vai, outros recordes ainda virão antes que Maria de Fátima caia no esquecimento do povo brasileiro.

Por Lúcia Leme
18/11/1988
Jornal O Globo

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